segunda-feira, 11 de abril de 2011

As lições do prefeito Graciliano Ramos


   Há mais de 70 anos, o administrador de uma cidadezinha perdida no sertão de Alagoas ensinava ao Brasil os caminhos da gestão pública bem-sucedida.
ZÓZIMO TAVARES
Editor-Chefe
   Ele entrou para a história como escritor. Por isso, pouco é lembrado como político e como administrador público. Mas não custa lembrar que foi o cargo de prefeito de uma cindadezinha do sertão alagoano que revelou para as letras aquele que seria consagrado como o melhor romancista brasileiro da geração modernista: Graciliano Ramos.
   Considerado um escritor tardio, seu livro de estréia, o romance Caetés, foi editado quando ele já tinha 40 anos. Ao todo, escreveu 18 livros, alguns publicados após sua morte.
   Filiado ao Partido Comunista, não fez concessões aos camaradas. Não aceitou a censura do partido às suas obras. Também não fez concessões às editoras.
   Foi um intelectual engajado, mas não teleguiado. Autodidata, falava fluentemente o inglês, o francês e o italiano. Seus livros ganharam o mundo e as telas do cinema. São Bernardo, Vidas Secas e Memórias do Cárcere viraram filmes, dirigidos por Nelson Pereira dos Santos. Fumante inveterado, morreu de câncer, aos 60 anos, em 1953.
   Há dois anos, o professor e crítico literário M. Paulo Nunes, presidente do Conselho Estadual de Cultura, lançou o livro ?As lições de Graciliano?, com artigos e ensaios sobre a obra do escritor. Tomo seu título de empréstimo para esta matéria em que pretendo resgatar Graciliano Ramos como político e gestor público, neste momento da posse de novos prefeitos que buscam referências capazes de subsidiá-los na busca do êxito de suas administrações.

O prefeito que virou escritor
   Nascido em Quebrangulo, no sertão alagoano, em 1892, Graciliano Ramos revelou-se como escritor ao dirigir a cidade de Palmeira dos Índios, da qual foi prefeito de 7 de janeiro de 1928 a 10 de abril de 1930. No exercício do cargo, redigiu dois relatórios (prestação de contas) da Prefeitura Municipal ao governador de Alagoas, Álvaro Paes.
   Publicados no Diário Oficial, os textos foram lidos pelo poeta e editor Augusto Frederico Schmidt, dono da Editora Schmidt, no Rio. O editor calculou que aquele prefeito deveria ter um livro engavetado. Se tivesse, iria publicá-lo. E tinha mesmo, Caetés. A supervisão da publicação, em 1933, ficou a cargo de Jorge Amado.

Pai da Gestão Fiscal 
   Graciliano Ramos é considerado o Pai da Gestão Fiscal Responsável. Ao redigir os famosos relatórios da administração, o prefeito de Palmeira dos Índios dava exemplo de austeridade, respeito e ética no trato com o dinheiro do povo. A prestação de contas, de 1929, antes de expor o talento literário, revelava um homem público comprometido com a gestão fiscal responsável.
   Quando Graciliano foi prefeito, Palmeira dos Índios era uma cidade suja, com porcos andando pelas ruas. Ele ordenou que fossem eliminados. O encarregado de matar os porcos vadios voltou um dia, com a espingarda na mão, com a cara de assustado. O prefeito perguntou-lhe, então, se não havia mais porcos pelas ruas. O homem respondeu que sim, mas eram do coronel Sebastião, pai do senhor prefeito, ele não ia matar. Graciliano repreendeu-o: ?Prefeito não tem pai?. Demitiu o empregado por não cumprir as ordens recebidas.
Os relatórios
   No relatório da Prefeitura ao governador, em 10 de janeiro de 1929, prestando contas de seu primeiro ano de administração, Graciliano contou: ?Houve lamúrias e reclamações por se haver mexido no cisco preciosamente guardado no fundo dos quintais; lamúrias, reclamações e ameaças porque mandei matar algumas centenas de cães vagabundos; lamúrias, reclamações, ameaças, guinchos, berros e coices de fazendeiros que criavam bichos nas praças?. E, no ano seguinte: ?cães, porcos e outros bichos incômodos não tornaram a aparecer nas ruas. A cidade está limpa?.
O funcionalismo
   Dos funcionários que encontrou na Prefeitura, Graciliano conservou poucos: ?Saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma?. Governou debaixo de reclamações: ?Quando iniciei a rodovia de Sant?Ana, a opinião de alguns munícipes era de que ela não prestava, porque estava boa demais. Como se eles não a merecessem?.
   Austero, arredio a promessas e ao nepotismo, aplicava todos os recursos e prestava contas. Mesmo assim, não se considerava um grande administrador público. ?Convenho em que o dinheiro do povo poderia ser mais útil se estivesse nas mãos, ou nos bolsos, de outros menos incompetentes do que eu; em todo caso, transformando-o em pedra, cal, cimento, etc. sempre procedo melhor que se distribuísse com os meus parentes, que necessitam, coitados?.
Receita e despesa
   ?A receita, orçada em 50:000$000, subiu, apesar de o ano Ter sido péssimo, a 71:649$290, que não foram sempre bem aplicados por dois motivos: porque não me gabo de empregar dinheiro com inteligência e porque fiz despesas que não faria se elas não estivessem no orçamento?.

As estradas
   ?Procurei sempre os caminhos mais curtos. Na esradas que se abriram só há curvas onde as retas foram inteiramente impossíveis.
   Evitei emaranhar-me em teias de aranha.
   Certos indivíduos, não sei porque, imaginam que devem ser consultados; outros se julgam autoridade bastante para dizer aos contribuintes que não paguem impostos.
   Não me entendi com esses?.
Iluminação
   ?A prefeitura foi intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para o fornecimento de luz. Apesar de ser o negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras. É um bluff. Pagamos até a luz que a lua nos dá. (...)
O cemitério
   ?Pensei em construir um novo cemitério, pois o que temos dentro em pouco será insuficiente, mas os trabalhos a que me aventurei, necessários aos vivos, não me permitiram a execução de uma obra, embora útil, prorrogável. Os mortos esperarão mais algum tempo. São os munícipes que não reclamam?.

As obras
   ?Quando iniciei a rodovia de Sant?Ana, a opinião de alguns munícipes era de que ela não prestava porque estava boa demais. Como se eles não a merecessem. E argumentavam. Se aquilo não era péssimo, com certeza sairia caro, não poderia ser executado pelo município. (...)

A reeleição
   Apesar do sucesso administrativo, Graciliano deixou a Prefeitura certo de que não seria reeleito, porque fez corretamente o que tinha que ser feito. ?Não favoreci ninguém. Devo ter cometido numerosos disparates. Todos os meus erros, porém, foram da inteligência, que é fraca. Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome. Não me fizeram falta. Há descontentamento. Se a minha estada na Prefeitura por esses dois anos dependesse de um plebiscito, talvez eu não tivesse dez votos?.
 
   Tratava-se, naturalmente, de um exagero de escritor. Ele saiu-se na política quase tão bem quanto na literatura. A atenção que deu à educação quando prefeito rendeu-lhe o convite para assumir a direção da Instrução Pública de Alagoas, cargo correspondente hoje ao de Secretário de Educação. Aí  revolucionou os métodos de ensino utilizados no Estado.
   Graciliano foi prefeito quando o Brasil, sobretudo o interior, ainda nem sonhava com o aparato burocrático, técnico e legal que hoje se coloca à disposição dos gestores públicos. E deu conta plenamente do recado, porque nele havia espírito público, austeridade, competência, ética e coragem. Ao optar pela rigorosa aplicação do dinheiro público, pela transparência, pela impessoalidade, pela legalidade, dando as costas ao nepotismo, ao clientelismo e ao assistencialismo, ele fez uma administração avançada num Brasil atrasado.
   Que suas ações sirvam de lições aos novos prefeitos que querem passar à história como homens e mulheres públicos que honram o cargo e o mandato!

Nenhum comentário:

Postar um comentário